Reprodução
Aqui entre nós: não existe nada mais estúpido do que querer acender, pela primeira vez, um cigarro: a vítima vai encher os pulmões de fumaça, achar o gosto ruim e engasgar. Mas, depois de algum sofrimento, quando conseguir ficar viciada, a vítima terá os dentes amarelados e ficará com as mãos, os cabelos e as roupas fedidos. Além disso, vai viver com menos fôlego, ficar estatisticamente mais sujeita a uma série de doenças, inclusive uma rica lista de cânceres, e tudo isso ainda vai custar a ela um bom dinheiro todos os dias. Sabendo disso (e as pessoas em geral sabem), por que é que alguém começa a fumar? Porque publicidade funciona. E, no caso do cigarro, ela não vende um produto (que afinal é, mesmo, muito ruim), mas sim o status, a imagem e o estilo de vida que esse produto supostamente vai trazer ao freguês. É por isso que, durante muitos anos, a indústria pagou um bom dinheiro a grandes nomes de Hollywood, como John Wayne, Cary Grant e Bette Davis, para que aparecessem, sempre que possível, com um cigarro na boca ou nas mãos. É também por isso que Emerson Fittipaldi correu num John Player Special, Nelson Piquet num Camel e Ayrton Senna num Marlboro.
Eu nunca fumei e, quando adolescente, era intransigente com amigos meus que começavam a fumar. Achava aquilo uma burrice e não os perdoava. Com o passar do tempo, fui ficando menos dono da verdade e passei a aceitar melhor que cada um fizesse o que bem entendesse com a própria vida, mesmo que eu não concordasse. Na mesma medida em que fui ficando mais compreensivo com o cigarro dos outros, o mundo foi ficando menos. Muitas pessoas, inclusive ex-fumantes, passaram a ter tolerância zero com relação ao fumo alheio. E o cigarro foi sendo expulso, passo a passo, de todos os lugares: saiu dos ambientes de trabalho, da Fórmula 1, dos anúncios nas TVs e revistas e, finalmente, das mesas de bar.
A indústria do tabaco tem vivido sob fogo pesado, e isso é bom, já que ela sempre jogou sujo e não produz nada que preste. Por outro lado, essa artilharia faz parte de um movimento um pouco assustador, que é a intromissão cada vez maior do Estado na nossa vida. As pessoas comuns, com pouco acesso à mídia e a outros canais de representação, acabam espremidas entre os interesses das grandes empresas e de grupos organizados. E o governo, para ouvir o que o povo quer (como se “povo” fosse singular), usa mais a mídia e o Ibope do que as urnas ou outros canais diretos de consulta, acabando por agir de maneira bastante autoritária. E esse novo autoritarismo traz como novidade o uso e o abuso da palavra “saúde” para se justificar.
Ditadura da saúde
Onde estará, na questão do cigarro, o equilíbrio? Será deixando que cada um faça o que quiser, acendendo seu cigarrinho quando bem entender? Ou será que é preservando os pulmões de quem não fuma, expelindo os fumantes para o meio da rua? Será permitindo que a indústria do tabaco anuncie livremente, gastando fortunas para conquistar corações e mentes de adolescentes bobinhos? Ou será que é aceitando o Estado como o guardião de nossa saúde e bem-estar, deixando que seja ele quem decida o que podemos ou não fazer, onde e quando? Nessa discussão sem fim, eu não me sentiria bem defendendo a indústria do fumo, que nunca jogou limpo. Tampouco fico feliz ao lado dos puritanos que louvam um Estado intrometido que, sob o argumento da defesa da saúde e do bem comum, tem avançado vorazmente sobre os direitos individuais. Me atrai mais, na verdade, a ideia de um Estado que diminua as proibições e amplie a educação, deixando a cada pessoa a autonomia para decidir como levará sua vida. Houve tempos em que os padres mandavam e desmandavam, em nome de Deus. Depois foi a vez dos generais, em nome da ordem. Agora o autoritarismo vem vestido de branco e atende pelo título de doutor. Eu não tenho nenhuma simpatia pela indústria do tabaco e pelo próprio tabaco, mas tampouco me sinto bem sob as ordens da nova ditadura da saúde.
*André Caramuru Aubert, 48, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é[email protected]
r