Assim como os sacrificados em terreiros, bilhões de animais que alimentam com carne, leite e ovos o Brasil e parte do mundo estão à margem da proteção do Estado no que se refere a bem-estar.
Enquanto a União Europeia estabeleceu a meta de banir, até 2013, gaiolas e celas de animais produtores de alimentos, aqui o único direito desses bichos é morrer sem sentir dor (ou quase). Suas condições de vida são parte da equação que resulta na lucratividade da indústria.
No Brasil, 80 milhões de galinhas se espremem em gaiolas de medidas tão exíguas que não conseguem nem bater as asas. O espaço individual onde passam toda a vida como boas poedeiras tem o tamanho de uma folha de papel sulfite.
Enfrentam a mesma restrição de movimentos as 2,6 milhões de porcas que produzem leitões para abate.
Confinadas em celas de gestação, cabe a elas ficar em pé ou deitadas para amamentar os filhotes, sem poder caminhar ou até se virar.
Bezerrinhos machos são separados de suas mães leiteiras ao nascer. Já que não são necessários como reprodutores --o sêmen de um touro é suficiente para centenas de vacas ao ano-- esses bichos vivem em pequenas celas, bebendo leite artificial até serem abatidos, aos três meses de idade, para virar "carne de vitelo".
Por enquanto, no Brasil só estão protegidos os animais de criatórios com certificação orgânica. Além de não receberem antibióticos, não podem ser mantidos "em gaiolas, correntes, cordas ou qualquer outro método restritivo", de acordo com norma publicada pelo governo federal em 2008.
http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/1002841-projeto-de-lei-acende-debate-sobre-direito-animal.shtml
Um projeto de lei apresentado na Assembleia Legislativa de São Paulo quer proibir o uso e o sacrifício de animais em cultos religiosos no Estado.
Mesmo longe de ser votado, o projeto mobilizou religiosos e protecionistas. O debate contrapõe tradição cultural e direito animal e mostra furos na atual legislação.
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Para o deputado Feliciano Filho (PV), o autor, ele não propõe nada além do que a lei prevê. "Só fixei multa para quem praticar o sacrifício, que já é proibido."
Ele se refere à Constituição e à Lei de Crimes Ambientais. Uma garante que os animais não sofram crueldade. Na outra, maus-tratos é crime. "Matar sem anestesiar é maus-tratos", argumenta.
Mas a Carta também garante liberdade de culto. O que viria primeiro?
"É um conflito. A legislação encampa valores da liberdade religiosa e do ambiente. Os dois lados podem ter razão", diz Daniel Lourenço, especialista em direito animal.
No Sul, uma lei de 2003 permite sacrifício de bichos em rituais de matriz africana. Em 2005, houve tentativa frustrada de derrubá-la.
Em São Paulo, a discussão mal começou e não envolve só as religiões africanas.
TRADIÇÃO DO SACRIFÍCIOO sacrifício animal está na origem das maiores religiões do mundo. Historicamente, a morte dos animais era feita para expiação dos pecados ou em celebrações, explica o sociólogo Reginaldo Prandi.
Como religião institucionalizada, o cristianismo nunca adotou o sacrifício, mas teologicamente admite o seu significado. "Quando recebem a hóstia, os católicos fazem um sacrifício simulado. Para os cristãos, a morte de Jesus foi o último sacrifício."
No judaísmo, não é comum o sacrifício de animais, mas existe o abate kosher, que usa em larga escala técnicas próprias para matar o animal.
No abate kosher, assim como no halal (abate muçulmano), o animal é morto por degola e não é anestesiado.
A nova lei enquadraria toda morte de bicho feita sem insensibilização (anestesia).
Em 2010, o Brasil exportou 475,23 mil toneladas de carne para países que exigem abate halal ou kosher (39% do total exportado).
"O abate kosher não é um ritual. O ideal judaico é o vegetarianismo. Consumir carne é uma concessão a alguém de alma fraca", diz o rabino Ruben Sternschein, da Congregação Israelita Paulista. Segundo ele, o abate kosher "deve ser feito com o mínimo de sofrimento para o animal".
Já o abate halal de bois, aves e carneiros é um sacrifício religioso, diz Mohamed Hussein El Zoghbi, diretor da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil.
"Mas prima pelo bem-estar como nenhum outro. A morte por degola não causa sofrimento. A ruptura das veias e da traqueia faz com que o animal morra rapidamente. Quem vê pensa que está sofrendo, mas já está morto, se debate por reflexo."
De acordo com o presidente do CEN (Coletivo de Entidades Negras), Márcio Alexandre Gualberto, o bicho morto no candomblé também é consumido -nada a ver com a imagem de feitiçaria e galinha em encruzilhada.
"Tem quem faça isso, mas não é nossa tradição. Usam partes da tradição para fazer coisas que não são nossas."
Segundo ele, o sacrifício é praticado por sacerdotes treinados para minimizar o sofrimento. "O animal não pode sofrer. Somos preocupados com o bem-estar dos animais oferecidos aos deuses."
São Paulo tem 719 terreiros, segundo levantamento de Prandi, para quem o projeto é preconceituoso: "As motivações da lei são o preconceito e a ignorância. Se o deputado estivesse preocupado com animais, deveria bater na porta de frigoríficos".
Para Antonio Carlos Arruda, coordenador de políticas públicas da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania de SP, o projeto é "inaceitável". "Liberdade religiosa é princípio da democracia."
Uma reunião do Fórum Inter-Religioso da secretaria discutiu a participação de entidades do Estado no movimento de reação ao projeto. O slogan da campanha, que antes era "Não toquem nos nossos terreiros", foi ampliado para "Cultura de paz e liberdade religiosa já!".
Um ato público organizado pelo CEN está previsto para o dia 15, às 13h, em São Paulo, no vão do Masp.
LIMITE DA LIBERDADEDo outro lado, os defensores dos animais consideram o projeto pertinente ao menos por levantar o debate. "Nossa sociedade ainda tem a ideia de que animais são coisas. Nessa visão, o direito do homem é superior ao deles", diz o advogado Lourenço.
O promotor de Justiça do Estado Laerte Fernando Levai diz que há limites morais para o exercício da liberdade religiosa. "Há que se respeitar o direito ao culto, sim, desde que as práticas não impliquem violência."
O promotor João Marcos Adede y Castro, do Rio Grande do Sul, reforça o coro: "Se fosse assim, era só criar uma religião de sequestradores e haveria respaldo legal".
O mesmo pensa a veterinária Ingrid Eder, da ONG WSPA Brasil. "Que cultura é essa que causa maus-tratos aos animais? A cultura evolui de acordo com o conhecimento. Hoje, sabemos que os animais sentem dor."
Reginaldo Prandi acredita que a evolução deve vir de dentro da religião. "Há segmentos do candomblé que não matam animais. Pode ser que, no futuro, a religião evolua para um sacrifício mais simbólico, mas isso não pode ser imposto. Não se muda uma religião por decreto."
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