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Escrevemos recentemente acerca de alguns preceitos, constitucionais e legais, que vedam a prática de crueldade contra os animais.
Na ocasião, foi evocada a Lei n.º 11.794/2008, que estabelece procedimentos para o uso educacional e científico de animais, com vistas à regulamentação do art. 225, § 1º, inciso VII, da Constituição Federal. Esta norma é conhecida como Lei Arouca, com referência ao deputado Sérgio Arouca, médico sanitarista e deputado federal, autor do projeto de lei que deu origem ao diploma legal.
Referida lei estabelece a legitimidade do uso de animais em relação a atividades de ensino e pesquisa científica. No que se refere à seara educacional, sua aplicação abrande o ensino superior e a educação profissional técnica de nível médio da área biomédica. Já em relação ao campo da pesquisa científica, determina a lei em seu art. 1º, § 2º: “São consideradas como atividades de pesquisa científica todas aquelas relacionadas com ciência básica, ciência aplicada, desenvolvimento tecnológico, produção e controle da qualidade de drogas, medicamentos, alimentos, imunobiológicos, instrumentos, ou quaisquer outros testados em animais, conforme definido em regulamento próprio”.
Nos termos da lei, trata-se de uma utilização humanitária dos animais, sendo admitida a prática da eutanásia, sempre que, encerrado o experimento ou em qualquer de suas fases, for tecnicamente recomendado aquele procedimento ou quando ocorrer intenso sofrimento. Ademais, os experimentos que possam causar dor ou angústia devem se desenvolver sob sedação ou anestesia adequadas.
Tal regime vem sendo objeto de acirradas críticas, inclusive em relação ao seu aspecto constitucional. Cite-se a posição de Paulo Affonso Leme Machado, para quem referida norma, ao não estabelecer a necessidade de um procedimento formal, caso a caso, em relação ao sacrifício de animais, configura “notória inconstitucionalidade” (“A Lei nº 11.794/2008 - uma lei cruel”, In: Interesse Público, Belo Horizonte, ano 10, n. 52, nov/dez 2008).
De todo modo, diante do princípio de presunção de constitucionalidade das leis, apresenta-se como inequívoca a vigência e a aplicação da norma em comento.
Aspecto que merece consideração é o quanto vertido na Lei n.º 9.605/98, que dispõe, entre outros, sobre as infrações penais ambientais, tipificando em seu art. 32 o crime de maus tratos contra animais (“Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa”). Ocorre que o seu § 1º dispõe o seguinte: “Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos” (destaque nosso).
Como se nota, tal norma preconiza de modo mais adequado uma condição necessária para o afastamento do tipo penal nas situações de atividades didáticas ou científicas envolvendo animais: a inexistência de recursos alternativos. Trata-se de solução mais compatível com o princípio da proporcionalidade, que impõe a diretriz danecessidade, segundo a qual deve ser optar pelo meio que carreie menor impacto sobre o interesse ou o bem tutelado.
Observe-se que o regime da Lei n.º 11.794/2008 é menos enfático nesse sentido, encontrando-se uma ligeira referência a tal aspecto no art. 5º, que elenca, entre as atribuições do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (CONCEA), a seguinte: “monitorar e avaliar a introdução de técnicas alternativas que substituam a utilização de animais em ensino e pesquisa”.
A despeito disto, merece prevalecer tal condição referente à inexistência de recursos alternativos, que deve ser efetivamente demonstrada nas situações que se apresentarem.
Outro ponto que merece consideração representa, à luz das recentes discussões envolvendo o uso de animais em experimentos envolvendo a indústria de cosméticos, a adequação entre o meio empregado e a finalidade pretendida.
Neste particular, verifica-se que a Lei n.º 11.794/08 parece dar solução compatível, legitimando a utilização de animais nas atividades de pesquisa científica relacionadas ao controle da qualidade de drogas, medicamentos, alimentos e imunobiológicos (cf. dispõe o art. 1º, § 2º, acima reproduzido). A teleologia envolvida é clara: nas situações envolvendo experimentos científicos atinentes à melhoria da saúde humana, o uso de animais se justifica. Percebe-se, logo, uma inequívoca vertente antropocêntrica do ordenamento.
Ocorre que a finalidade acima referida – desenvolvimento de cosméticos – não se compatibiliza, a nosso ver, com a diretriz normativa referida, na medida em que a interface com a questão da saúde humana é meramente secundária, destacando-se, a bem da verdade, a atividade econômica desenvolvida. Assim, mostra-se incompatível com o ordenamento a utilização de animais para tais propósitos. Nesta seara, a própria Constituição Federal é infringida.